O argumento apresentado pelo ministro, no sentido de evitar “críticas acerbas” ao Poder Legislativo e permitir a “rediscussão” de um tema já pacificado pela Corte, suscita uma série de questões preocupantes.

A recente decisão do ministro Gilmar Mendes de reunir para julgamento conjunto diversas ações que discutem a constitucionalidade da Lei 14.701/2023 – conhecida como Lei do Marco Temporal – acendeu uma “luz amarela” no Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento apresentado pelo ministro, no sentido de evitar “críticas acerbas” ao Poder Legislativo e permitir a “rediscussão” de um tema já pacificado pela Corte, suscita uma série de questões preocupantes. O que está, de fato, em jogo? O direito dos povos indígenas à terra, já reconhecido na Constituição Federal de 1988, está sendo relativizado por uma manobra legislativa que tenta se impor sobre uma decisão do STF. No entanto, o problema se agrava ainda mais quando consideramos a vulnerabilidade dos povos indígenas dentro do sistema político brasileiro.
A Instabilidade Criada pela “Rediscussão”
O argumento de que o Congresso tem “competência de conformação legal” para rediscutir o artigo 231 da Constituição é, no mínimo, problemático. Em primeiro lugar, a decisão do STF que declarou inconstitucional o Marco Temporal baseou-se no entendimento de que os direitos territoriais indígenas são originários, imprescritíveis e inalienáveis. Não há margem para interpretações que reduzam essa proteção.
No entanto, a aprovação rápida da Lei 14.701/2023 pelo Congresso Nacional logo após essa decisão revela uma tentativa de esvaziar o efeito vinculante da decisão do STF. O próprio ministro Gilmar Mendes, ao sinalizar a legitimidade dessa nova tentativa legislativa, abre um precedente perigoso: se uma decisão judicial pode ser constantemente reavaliada por meio de novas leis, qual a força normativa da Constituição e das próprias decisões do Supremo?
A Vulnerabilidade Política dos Povos Indígenas
Outro fator fundamental a ser considerado é o desequilíbrio de forças dentro do Congresso Nacional. Enquanto o agronegócio e setores interessados na flexibilização dos direitos territoriais indígenas possuem uma bancada robusta, os povos originários têm pouca ou nenhuma representatividade política. A aprovação do Marco Temporal pelo Legislativo não reflete um debate democrático justo, mas sim a imposição de interesses econômicos sobre direitos fundamentais.
A decisão do STF contra o Marco Temporal foi um raro momento em que o direito dos povos indígenas foi garantido por um dos Três Poderes. No entanto, a tentativa de “rediscussão” da matéria apenas reforça a instabilidade jurídica e a vulnerabilidade dos indígenas, que dependem do STF como última instância de proteção.
O STF e a Necessidade de Impor Limites
Diante desse cenário, cabe ao Supremo reafirmar seu papel de guardião da Constituição e garantir que a sua decisão sobre o Marco Temporal seja respeitada. O artigo 231 da Constituição é claro: os direitos territoriais indígenas são originários e imprescritíveis. Não cabe ao Poder Legislativo tentar modificar esse entendimento por meio de leis infraconstitucionais ou, no limite, por meio de uma emenda constitucional que desvirtue o princípio original.
Se o STF permitir que essa rediscussão avance, estará abrindo espaço para que qualquer direito fundamental seja relativizado pelo jogo político. E, nesse jogo, os povos indígenas são sempre o lado mais fraco.
A derrubada do Veto 30/2023 e a aprovação da Lei 14.701/2023 demonstram que os interesses econômicos têm prevalecido sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas. A postura do ministro Gilmar Mendes ao permitir a rediscussão do tema sugere uma permissividade preocupante, que pode enfraquecer não apenas a segurança jurídica das demarcações, mas a própria autoridade do STF como última instância de defesa dos direitos fundamentais.
Se a tese do Marco Temporal voltar a ser aceita por meio de uma nova decisão judicial ou legislativa, estará aberta a porta para novas ofensivas contra os direitos territoriais indígenas. O Supremo precisa reafirmar que o Marco Temporal é inconstitucional e que nenhuma nova norma pode revogar esse entendimento. Caso contrário, a “luz amarela” se transformará em um sinal vermelho definitivo para os povos originários do Brasil.
Por isso tese do Marco Temporal não é apenas um equívoco inocente, mas um ardil criado e sustentado propositalmente para atender a interesses econômicos e políticos. Ele se baseia em um raciocínio falacioso, contradiz a Constituição e a jurisprudência do STF, e ainda ignora a realidade histórica dos povos indígenas no Brasil. Ou seja, não é um erro ingênuo, mas uma estratégia consciente e calculada para restringir o DIREITO DOS NOSSOS POVOS.
*Wilson Matos da Silva – É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. nosliwsotam@gmail.com
