O discurso da “integração” do indígena à sociedade não-indígena ainda permeia decisões judiciais em diferentes instâncias.

Dr Wilson Matos da Silva – Foto: Divulgação

A Constituição Federal de 1988 reconhece, em seu artigo 231, que os povos indígenas possuem organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

O artigo 232, por sua vez, garante aos indígenas legitimidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos. Contudo, apesar desse reconhecimento constitucional, o sistema de justiça brasileiro continua a sustentar uma cultura da negação, na qual os direitos indígenas são constantemente relativizados por uma hermenêutica colonial e assimilacionista.

O discurso da “integração” do indígena à sociedade não-indígena ainda permeia decisões judiciais em diferentes instâncias. Isso ocorre mesmo após a derrogação, pela própria Constituição de 1988, de dispositivos da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) que tratavam da “integração do índio” como uma meta estatal.

O artigo 4º dessa lei classificava os indígenas em “isolados”, “em vias de integração” e “integrados”, utilizando uma visão evolucionista que serviu como ferramenta jurídica para negar direitos aos povos indígenas. Apesar de ultrapassada, essa lógica persiste nas práticas judiciais, especialmente no campo do Direito Penal.
Decisões judiciais e a negação dos direitos indígenas.

O Judiciário brasileiro tem reiteradamente negado direitos fundamentais dos povos indígenas ao se apegar a um critério falacioso: o grau de “integração” ou “aculturação” do indígena na sociedade envolvente. Sentenças têm afirmado, por exemplo, que a realização de festas ou a adoção de práticas ocidentais são elementos suficientes para dispensar laudos antropológicos e negar a aplicação de normas específicas de proteção aos indígenas.

Um caso emblemático é o entendimento de que um indígena que vive em contexto urbano já estaria plenamente “integrado” e, portanto, não poderia se beneficiar de direitos diferenciados previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
Essa lógica revela uma profunda incompreensão sobre o conceito de pluralismo jurídico. A identidade indígena não se dissolve pelo simples contato com a sociedade não-indígena.

Como bem pontua o Ministro Carlos Ayres Britto, a tradicionalidade da posse indígena não se perde pelo esbulho forçado, assim como a identidade indígena não desaparece com a coexistência cultural. A tentativa de impor um critério de “pureza” para o reconhecimento de direitos indígenas é uma forma velada de racismo institucional.

O Pluralismo Jurídico como Princípio Constitucional Ignorado
O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, que reconhece o direito dos povos indígenas de manter suas próprias instituições e sistemas jurídicos. Esse reconhecimento deveria impedir o Judiciário de impor uma lógica assimilacionista, mas o que se observa é uma tendência de invisibilização das práticas indígenas de resolução de conflitos.

O pluralismo jurídico no Brasil tem sido reduzido a um discurso meramente retórico, sem efeitos concretos na prática forense.
A manutenção de dispositivos como o artigo 56 do Estatuto do Índio, que subordina a aplicação de penas ao “grau de integração” do indígena, é um resquício claro do paradigma da tutela e da negação da autodeterminação indígena.

A Primeira Turma do STF, ao reconhecer que o regime de semiliberdade é “direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena” (HC 85.198-3-MA), sinalizou um importante avanço, mas esse entendimento ainda não se consolidou nas instâncias inferiores.

Conclusão: O Etnocídio Institucionalizado
A permanência de decisões judiciais que negam direitos indígenas com base no grau de “integração” revela que o Brasil ainda vive sob a sombra do etnocídio institucionalizado. O Judiciário tem sido um agente ativo na perpetuação de uma mentalidade colonial, na qual os direitos indígenas só são reconhecidos quando convenientemente enquadrados em uma estrutura jurídica eurocéntrica.
Enquanto o Estado brasileiro continuar tratando os povos indígenas como sujeitos de direitos condicionais, e não como titulares de direitos plenos, o discurso constitucional permanecerá uma promessa vazia.

A superação dessa cultura da negação exige um enfrentamento direto e agressivo, tanto no campo jurídico quanto no debate público. Não se trata de “integrar” os indígenas, mas sim de reconhecer e respeitar sua existência plena, autônoma e soberana dentro do território que sempre foi seu por direito.


*Wilson Matos da Silva – É Indígena, Advogado OABMS 10.689 Criminalista, especialista em Direito Constitucional, e Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. nosliwsotm@gmail.com