
Por: Wilson Matos da Silva, Coordenador Regional do ODIN – Observatório Nacional de Direitos Indígenas.
Na manhã de ontem (07), Eliar Souza Cavalcante, jovem indígena Guarani Kaiowá, trabalhador de uma indústria local e pai de dois filhos, foi preso em seu local de trabalho por conta de uma suposta dívida de pensão alimentícia. O valor da execução motivou sua prisão? R$ 815,84. O valor que ele já havia pago? R$ 750,00 entregues mensalmente ao cacique de sua aldeia por estar impedido judicialmente de manter contato com a ex-companheira.
O que estamos presenciando é mais do que um erro jurídico. É o retrato nu e cru do racismo institucional que persiste em Mato Grosso do Sul, especialmente contra os indígenas que vivem nas aldeias urbanas de Dourados, como a Aldeia Bororó.
Eliar não fugiu de suas responsabilidades. Pelo contrário: trabalha duro, no turno da noite, recebe um salário mínimo e ainda assim luta para cumprir com sua obrigação como pai. No mês passado, começou a ter os valores da pensão descontados diretamente em folha — numa nova execução já em curso. Ainda assim, foi preso.
Ao ser abordado, não ofereceu resistência. Explicou sua situação. Disse que pagava como podia, com os meios que tinha. Mas ninguém quis ouvir.
A casa de Eliar — de chão batido, estrutura improvisada, sem saneamento ou conforto — é uma fotografia da miséria que assola as aldeias que, ironicamente, estão localizadas dentro da Capital Econômica do Estado. Dourados não é apenas grande: é cruelmente desigual.
As comunidades Guarani e Kaiowá da Reserva Indígena de Dourados vivem em permanente estado de emergência. Faltam água, saúde, transporte, educação de qualidade e, sobretudo, respeito à cultura e aos modos de vida. O Judiciário ignora isso. Ignora que, em muitas famílias, o pagamento de obrigações se dá de forma comunitária, mediada pelas lideranças tradicionais. Ignora que a prisão de um trabalhador indígena afeta não só ele, mas toda a sua família extensa — esposa, filhos, sogros, sobrinhos — que sobrevivem em rede.
A Constituição Federal de 1988 é clara: o Estado deve reconhecer a organização social, os costumes, as línguas e tradições dos povos indígenas (art. 231). Mas no processo de Eliar, isso foi solenemente ignorado. Nem mesmo a Recomendação nº 75 do CNJ, que orienta o respeito às especificidades culturais indígenas, foi observada. Para o sistema, Eliar é apenas um número, uma dívida, um CPF.
Mas para nós, ele é um irmão, um pai, um homem honrado, um guerreiro em meio à lama e à opressão.
Quantos Eliar mais serão presos por serem pobres, por serem indígenas, por não caberem no molde elitista da Justiça brasileira?
Dourados precisa olhar para dentro de si. O Brasil precisa olhar para os seus primeiros povos. E o Judiciário precisa urgentemente sair da sua bolha e compreender que Justiça só existe quando é humana, culturalmente sensível e socialmente responsável.
A luta continua.
